“Saudade é o amor que fica”
Clarice Lispector
Foi lançado recentemente um importante livro no campo da Tanatologia “Amor e Perda: as raízes do luto e suas complicações”(1). O autor, Colin Murray Parkes, que já esteve no Brasil algumas vezes, é um conceituado pesquisador da área, cujas contribuições são de inestimável valor para os profissionais que lidam direta ou indiretamente com luto e perdas.
Na introdução, Colin nos lembra que se o amor, laço psicológico que vincula uma pessoa a outra, é a fonte de prazer mais profunda na vida, a perda daqueles que amamos é a mais profunda fonte de dor. Administrar o amor parece tarefa fácil, mas como dar conta da dor de um rompimento amoroso, de um laço afetivo intenso?
Nossa experiência com famílias enlutadas têm nos ajudado a compreender quão complexa e desorganizadora é essa vivência. Não há um conjunto de regras que possam sinalizar os procedimentos a serem tomados, o luto é um processo individual, de tempo indefinido e com manifestações mais diversas possíveis.
O que é sabido, contudo, é que muitas mudanças acontecem do lado de dentro e do lado de fora. A construção de uma nova identidade, sem a presença da pessoa amada, vai demandar um tempo psicológico que é muito diferente, em seu mecanismo interno, do tempo real do relógio.
O próprio Freud(2), em Luto e Melancolia, cunhou o termo “trabalho de luto”, entendendo que o mesmo requer uma elaboração psicológica e um longo processo de reorganização. O “start” desse processo se dá no contato da pessoa com a realidade da perda, ou seja, com a notícia da morte, com a preparação da cerimônia de velório, sepultamento. No contato com o corpo, com o sentimento de ausência e de irreversibilidade da morte, o enlutado começa o seu trabalho de luto.
Aceitar a realidade da morte
A tarefa inicial é aceitar a realidade da perda. Enfrentar essa idéia exigirá uma luta grande entre o real e o imaginário. Pode acontecer de alguns enlutados ficarem fixados na idéia de que o falecido está viajando. É também freqüente ouvir os familiares, ao se referirem à pessoa, falarem no tempo presente.
A procura por objetos, cheiros, fios de cabelo, última roupa usada, etc. também é outro movimento para lidar com a perda. Sabemos que esses mecanismos trazem um conforto psicológico temporário e aliviam a dor da perda, mas só postergam a aceitação da realidade que será inevitável.
Expressar a dor
Aliada à essa difícil constatação da perda e da ausência, outro trabalho se faz necessário: o exercício de expressão da dor. Enfrentar esses momentos exige canais de expressão que nem sempre são utilizados pelo enlutado. Estudos científicos apontam para o grande ônus físico e mental de reter e conter sentimentos. Mais especificamente, na área da psicologia, é sabido que sentimentos que não têm expressão tornam-se fermento para a “depressão”. Assim, é importante que o enlutado encontre um canal de expressão que possa ajudá-lo na re-significação dos seus sentimentos mesmo que algumas manifestações como chorar, visitar diariamente o jazigo, trazer flores, fotos e bilhetes, possam vir na contra mão do que se espera dele.
Reorganização
Por fim, o enlutado é impelido a ajustar-se ao novo meio ambiente, a se reorganizar emocionalmente e continuar sua vida, agora sem a pessoa que amou - tarefa de grande monta que implica em encontrar outro lugar para a pessoa falecida. Dizemos que o momento de um equilíbrio suportável é quando o enlutado passa a não morrer de saudade, mas a viver a saudade.
Recentemente, convivemos com a notícia da tragédia do desaparecimento do avião AF 744 da Air France, com todos os seus passageiros. Além, naturalmente, de nos solidarizarmos com as famílias, nossa preocupação se aloja nas variáveis que por certo complicarão os processos de luto decorrentes desse episódio.
Como vimos acima, o inicio do processo de luto se dá com a notícia da morte, com a preparação da cerimônia de velório, sepultamento e com o contato com o corpo. Essas famílias, com certeza, terão muito mais intercorrências nesse curso do enlutamento. Não há corpos identificados, não há cerimônia de sepultamento, o que pode dificultar ou mesmo impedir uma despedida. Não há explicação que justifique o ocorrido, por isso, grandes esperanças, dúvidas e sofrimento vão pairar por muito tempo entre os familiares.
Não parece nada fácil lidar com as perdas e viver um luto. Mesmo sabendo que a morte faz parte do ciclo da vida, insistimos em não arquivar essa verdade em nossos vínculos e em nossas relações amorosas. Por isso, somos tomados por tanto sofrimento quando a natureza nos lembra que somos parte dela.
(1)PARKES, Colin Murray Amor e Perda: raízes do luto e suas complicações; [tradução Maria Helena Franco] .São Paulo:Summus, 2009
(2)FREUD, S (1915). Luto e melancolia – trabalhos sobre metapsicologia vol.14. Obras completas.
Fonte:
Ana Lúcia Naletto e Lélia de Cássia Faleiros são psicólogas do Centro Maiêutica e desenvolvem trabalhos na área de apoio ao luto em cemitérios, crematórios e funerárias. www.centromaieutica.com.br
Clarice Lispector
Foi lançado recentemente um importante livro no campo da Tanatologia “Amor e Perda: as raízes do luto e suas complicações”(1). O autor, Colin Murray Parkes, que já esteve no Brasil algumas vezes, é um conceituado pesquisador da área, cujas contribuições são de inestimável valor para os profissionais que lidam direta ou indiretamente com luto e perdas.
Na introdução, Colin nos lembra que se o amor, laço psicológico que vincula uma pessoa a outra, é a fonte de prazer mais profunda na vida, a perda daqueles que amamos é a mais profunda fonte de dor. Administrar o amor parece tarefa fácil, mas como dar conta da dor de um rompimento amoroso, de um laço afetivo intenso?
Nossa experiência com famílias enlutadas têm nos ajudado a compreender quão complexa e desorganizadora é essa vivência. Não há um conjunto de regras que possam sinalizar os procedimentos a serem tomados, o luto é um processo individual, de tempo indefinido e com manifestações mais diversas possíveis.
O que é sabido, contudo, é que muitas mudanças acontecem do lado de dentro e do lado de fora. A construção de uma nova identidade, sem a presença da pessoa amada, vai demandar um tempo psicológico que é muito diferente, em seu mecanismo interno, do tempo real do relógio.
O próprio Freud(2), em Luto e Melancolia, cunhou o termo “trabalho de luto”, entendendo que o mesmo requer uma elaboração psicológica e um longo processo de reorganização. O “start” desse processo se dá no contato da pessoa com a realidade da perda, ou seja, com a notícia da morte, com a preparação da cerimônia de velório, sepultamento. No contato com o corpo, com o sentimento de ausência e de irreversibilidade da morte, o enlutado começa o seu trabalho de luto.
Aceitar a realidade da morte
A tarefa inicial é aceitar a realidade da perda. Enfrentar essa idéia exigirá uma luta grande entre o real e o imaginário. Pode acontecer de alguns enlutados ficarem fixados na idéia de que o falecido está viajando. É também freqüente ouvir os familiares, ao se referirem à pessoa, falarem no tempo presente.
A procura por objetos, cheiros, fios de cabelo, última roupa usada, etc. também é outro movimento para lidar com a perda. Sabemos que esses mecanismos trazem um conforto psicológico temporário e aliviam a dor da perda, mas só postergam a aceitação da realidade que será inevitável.
Expressar a dor
Aliada à essa difícil constatação da perda e da ausência, outro trabalho se faz necessário: o exercício de expressão da dor. Enfrentar esses momentos exige canais de expressão que nem sempre são utilizados pelo enlutado. Estudos científicos apontam para o grande ônus físico e mental de reter e conter sentimentos. Mais especificamente, na área da psicologia, é sabido que sentimentos que não têm expressão tornam-se fermento para a “depressão”. Assim, é importante que o enlutado encontre um canal de expressão que possa ajudá-lo na re-significação dos seus sentimentos mesmo que algumas manifestações como chorar, visitar diariamente o jazigo, trazer flores, fotos e bilhetes, possam vir na contra mão do que se espera dele.
Reorganização
Por fim, o enlutado é impelido a ajustar-se ao novo meio ambiente, a se reorganizar emocionalmente e continuar sua vida, agora sem a pessoa que amou - tarefa de grande monta que implica em encontrar outro lugar para a pessoa falecida. Dizemos que o momento de um equilíbrio suportável é quando o enlutado passa a não morrer de saudade, mas a viver a saudade.
Recentemente, convivemos com a notícia da tragédia do desaparecimento do avião AF 744 da Air France, com todos os seus passageiros. Além, naturalmente, de nos solidarizarmos com as famílias, nossa preocupação se aloja nas variáveis que por certo complicarão os processos de luto decorrentes desse episódio.
Como vimos acima, o inicio do processo de luto se dá com a notícia da morte, com a preparação da cerimônia de velório, sepultamento e com o contato com o corpo. Essas famílias, com certeza, terão muito mais intercorrências nesse curso do enlutamento. Não há corpos identificados, não há cerimônia de sepultamento, o que pode dificultar ou mesmo impedir uma despedida. Não há explicação que justifique o ocorrido, por isso, grandes esperanças, dúvidas e sofrimento vão pairar por muito tempo entre os familiares.
Não parece nada fácil lidar com as perdas e viver um luto. Mesmo sabendo que a morte faz parte do ciclo da vida, insistimos em não arquivar essa verdade em nossos vínculos e em nossas relações amorosas. Por isso, somos tomados por tanto sofrimento quando a natureza nos lembra que somos parte dela.
(1)PARKES, Colin Murray Amor e Perda: raízes do luto e suas complicações; [tradução Maria Helena Franco] .São Paulo:Summus, 2009
(2)FREUD, S (1915). Luto e melancolia – trabalhos sobre metapsicologia vol.14. Obras completas.
Fonte:
Ana Lúcia Naletto e Lélia de Cássia Faleiros são psicólogas do Centro Maiêutica e desenvolvem trabalhos na área de apoio ao luto em cemitérios, crematórios e funerárias. www.centromaieutica.com.br
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